mais uma segunda-feira se abre à tonalidade lama-podre de um sistema. tudo coberto de lama, barro. a cidade exibe a sujeira real e metafórica. a cidade consegue suportar mais? uma cidade não existe por si só. não é uma coisa, não é um quadrado objetivo com pessoas dentro. a cidade significa uma série de escolhas, várias delas contraditórias e conflitantes. a cidade não se deixa caminhar. ela coloca o estômago a céu aberto.
a cidade não deixa esquecer.
27 de maio e o pesadelo do rio grande do sul está longe de acabar, ainda que a esperança de um tempo mais seco esteja logo ali, nas previsões emocionadas do site metsul, que começou trazendo cinco boas notícias para o RS. por mais que a promessa de um tempo seco, ainda que frio, possa nos deixar mais otimistas, há muitos lugares da cidade simplesmente esquecidos. humaitá (onde fica o estádio do grêmio) e o sarandi ainda enfrentam uma rotina de puro descaso. negligência ou projeto? os dois.
isso sem falar em outras cidades que foram simplesmente apagadas pela água, como eldorado do sul. esse episódio catastrófico traz à reflexão não apenas a sordidez do capitalismo, mas também a própria noção de espaço e pertencimento. é muito comum ouvirmos: “mas como as pessoas não saem antes?”. sair não é fácil. o discurso do “são apenas perdas materiais” é muito perverso, pois implica que a construção de uma vida inteira — uma casa e seus objetos — se resuma apenas a coisas sem nenhuma substância. uma casa é uma casa. a gente não precisa só de paredes para nos sentirmos protegidos. existe uma atmosfera que só é dada por uma noção de casa.
a casa é o local de familiaridade. há casas em que o desejo é sair dela o mais rápido possível. ainda assim, dentro de uma casa existe uma previsibilidade e com ela a gente segue a vida.
quando se perde a casa, não são só paredes, não é só mobília. “depois a gente corre atrás dos objetos” — é fácil reconstruir e correr atrás? será que quem já perdeu tudo nas enchentes de setembro consegue correr atrás mais vezes? eu não perdi a minha casa, embora tenha tido que me ausentar por 12 dias em virtude dos alagamentos no meu bairro. muita gente querida perdeu tudo nessa enchente. a tali grass é uma dessas pessoas e quem quiser conhecer o trabalho dessa talentosa ilustradora e quadrinista e puder apoiar com a reconstrução da casa dela fica aí a indicação. ela escreve a newsletter prefiro falar escrevendo.
muitos amigos de newsletters fora do RS escreveram sobre a nossa triste situação e reuniram links úteis para quem quiser apoiar causas mais abrangentes.
o amor afogado numa enchente, da vanessa guedes (segredos em órbita)
o incontornável da palavra sentida, do luri (puxadinho do luri)
relatei há algumas semanas a releitura de no país das últimas coisas e, depois disso, só tenho lido, muito lentamente, 4 3 2 1. a minha concentração está baixíssima, pois a gente nunca sabe quando vai precisar pegar a bolsinha de sair do bairro rapidamente e se abrigar na casa de alguém.
reli quarenta dias, da escritora maria valéria rezende, pouquíssimo antes do pesadelo de águas começar aqui no RS.
o livro aborda profundamente a questão de casa e pertencimento.
alice é uma professora aposentada que deixa sua vida em joão pessoa para morar em porto alegre, a pedido da filha. porém, alice descobre, muito cedo, que não possui um lugar. a cidade lhe é estranha, tudo lhe é estranho. na tentativa de entender a cidade, alice passa quarenta dias perambulando por porto alegre, atrás de filhos de outras pessoas, buscando razões para não sucumbir a si mesma. a protagonista escreve suas memórias num caderno com a capa da barbie e é muito engraçada a relação que ela estabelece com a figura ao contar suas histórias. alice, que não está no país das maravilhas, nega a familiaridade de uma nova casa pelo abraço amedrontador dos perigos que rondam o céu aberto da porto alegre não tão bela assim. compartilho um trecho sobre uma coisa da qual sinto muita saudade: o sol!
o sol já está baixando, daqui só se veem os últimos raios batendo num lado dos edifícios e das árvores, desenhadas na borda das silhuetas com um fiozinho de luz. taí uma coisa que eu estou gostando nesta cidade, é o longo entardecer com essa luz rasante pra fotógrafo nenhum botar defeito…
então, “silly doll”, hoje cedo eu parei de contar o percurso daquele meu primeiro dia de rua justamente quando essa luz estava desaparecendo e deixando atrás tudo azulado. você nem imagina onde fui parar no fim daquele dia que nunca acabou de verdade até eu vir dar de volta nesta minha moradia postiça. toca a escrever, barbie, que esta é a hora que mais periga de entristecer.
maria valéria rezende, quarenta dias
no quesito música, simplesmente obcecada pelo novo álbum da billie eilish. destaque para as faixas CHIHIRO, WILDFLOWER, THE GREATEST e BITTERSUITE.
merchan ruído branco
sabia que além de escrever sobre filmes e leituras essa pessoa aqui também escreve poemas? pois isso é a mais pura verdade. clicando neste link você pode adquirir seu exemplar de ruído branco.
por hoje é só, minhas confirmada e confirmades
bêjo,
sue ⚡