o começo é a coisa mais importante de um texto e estou sem maneiras de fazê-lo nessa situação. esse parágrafo primeiro é a última coisa a ser escrita na montagem da carta de hoje. passei uma semana sem publicar, mas sem pressão. não é como se as pessoas dependessem disso pra viver. ao mesmo tempo, quero dividir as experiências. por estar errática na edição de hoje, trazendo um compilado de leituras, será uma edição aberta a todos os que assinam/acompanham um troço absurdo e fascinante.
na metade de sobre o cálculo do volume #2 me dei conta de que estava incomodada em não ser surpreendida a cada página com acontecimentos bombásticos que pudessem criar no meu imaginário mil explicações para a prisão de tara selter no 18 de novembro. estava, é claro, lendo o livro do jeito errado.
a SEPTOLOGIA exige outra postura. que tara esteja presa no 18 de novembro é apenas o começo para uma reflexão que vai além dos desafios da física.
nesse segundo livro, a protagonista decide fazer outras coisas com sua condição circular: ela viaja para lugares próximos em busca de invernos, primaveras e verões que possam lembrá-la de como é viver um ano ao invés de apenas 24 horas. lá pelas tantas, ela se fixa num assunto (literalmente o império romano) e isso, claro, perpassado por memórias de quando o tempo dela corria junto com o do mundo. um trecho sobre sentido atribuído às coisas me pegou, até porque acho que já falei sobre isso em algum momento, muito provável quando falo de paul auster isto é, o tempo todo.
e foi o que fiz. sentei. fiquei pensando. inventei explicações. me admirei com aquele estranho mecanismo. o momento em que as coisas adquirem sentido. não que seja estranho. ou melhor, claro que é estranho, sem dúvida é uma das características mais esquisitas das pessoas quando você para e pensa a respeito, mas é uma dessas estranhezas que aceitamos sem questionamentos, uma necessidade de atribuir significado a objetos simples: alianças e joias, moedas de sorte e amuletos, pedras mágicas, relíquias e objetos sagrados.
sentei e fiquei pensando sobre aquilo que projetamos sobre as coisas. o que acontece nessas horas? a moeda da sorte é encontrada numa rua, a aliança é colocada no dedo, o relicário é tirado do lugar. nós enchemos os objetos de sentido, banhamos esses objetos em metais preciosos que buscamos num recanto ou outro dos pensamentos, e logo as coisas estão lá. repletas de sentido. e nós estamos aqui, iluminados por esse sentido.
sobre o cálculo do volume #2, solvej balle, tradução de guilherme da silva braga. editora todavia, ano 2024, p. 140-141
a impressão que eu tinha é de que as coisas ficariam nesse tom e o #2 acabaria sutilmente, mas qual não foi minha grande surpresa no último parágrafo. sim, a escritora guardou uma informação what the fuck? justamente para o finzinho do livro.
ou seja: agora estou maluca, preciso que o #3 seja logo traduzido (vamo lá, guilherme! dá teus pulo!). ou seja: uma história requer paciência e isso não é nenhuma novidade para quem já atravessou tranquilamente os miseráveis, guerra e paz, anna kariênina e irmãos karamazov. a questão é que quando diante de uma história de ficção científica a gente tem um modelinho pré-determinado e acha que todas devem seguir essa forma. e não é bem assim.
(detalhe: o livro não está catalogado como ficção científica, mas sim como literatura dinamarquesa e ficção contemporânea, o que já diz muito sobre o pré-julgamento que fiz)
retornei a 4 3 2 1 pela milésima vez, agora já ultrapassei os 50% da história, vou terminar. precisava de auster. estou no capítulo 5.1 e isso corresponde a 57% do livro. faltam só umas quatrocentos páginas e coisa. archie ferguson, em uma das suas quatro vidas, tem sérios questionamentos à figura divina. uma parte muito bacana do capítulo 2.4 aborda o fato de sabermos se fizemos a escolha certa ou não. em uma conversa com o meio-primo, noah, archie expõe uma situação em que é preciso chegar num determinado lugar e há duas opções de rota. uma mais longa, com certas características (maior fluxo de carros) e outra mais curta, mas que pode ser imprevisível. eis que ao final da exposição de tudo o que pode acontecer, lê-se:
e daí?
e daí que é por isso que as pessoas acreditam em deus.
o senhor deve estar brincando, monsieur voltaire.
só deus é capaz de ver a estrada principal e a estrada secundária ao mesmo tempo — o que significa que só deus pode saber se você fez a opção certa ou a opção errada.
como você sabe que ele sabe?
não sei. mas é essa a suposição que as pessoas fazem. infelizmente, deus nunca nos diz o que ele está pensando.
você pode muito bem escrever uma carta para ele.
é verdade. mas não ia adiantar nada.
qual o problema? não tem dinheiro para pagar o correio?
não tenho o endereço do destinatário.
paul auster em 4 3 2 1, companhia das letras, 2018, p. 233
nessa passagem está implicada a ideia de que para conhecer uma decisão como certa ou errada você precisa conhecer tudo sobre a situação a priori, mas, como é impossível termos o todo à disposição, apenas uma criatura mitológica teria esse poder. atribuição de sentido é depois (escrevi isso em alguma carta e possivelmente usando algum livro do paul auster como ponto de partida ou de chegada).
ainda no tópico leituras em andamento, estou quase terminando a vegetariana, da vencedora do nobel de literatura han kang. eu tinha esse livro há muito tempo no meu kindle e nunca havia dado uma chance. é um livro bem perturbador, mas quero comentar com calma quando tiver tudo concluído, pois algo me diz que tenho muito com o que me surpreender ainda.
por fim, o despertar do universo consciente, de marcelo gleiser, é um manifesto em defesa da especialidade/raridade do planeta terra. comentei em carta anterior uma entrevista que o atila iamarino fez com gleiser e eles abordaram muito do que está nesse livro. por enquanto minha única crítica é a capa parecer de livro de autoajuda, mas estou curtindo o conteúdo, bem didático.
zine marítimas impressa
gostaria de linkar para todas as pessoas que leem esse troço o volume novo da zine marítimas (zine litero-artística feminista), cuja publicação impressa só foi possível através do incentivo da lei paulo gustavo. ju blasina foi incansável na realização desse sonho e reuniu uma galera linda lá em rio grande dia 5 de outubro. para saber mais sobre o que é a zine, só clicar aí nos links, tá facinho.
para ouvir, recomendo o álbum el pintor, da banda interpol. tenho ouvido bastante nos últimos dias, combina com o climinha primaveril!
se cuidem, usem protetor solar
volto em breve
sue ⚡
Eu adorei sobre o cálculo do volume justamente por refletir sobre essa banalidade dos dias (ela vive uma situação fantástica, mas se apega ao seu Velho eu). Gostei de saber que alguém mais está esperando ansiosamente pelo terceiro volume hahaha
fiquei curioso para ler "a vegetariana" depois do nobel. antes, tinha passado batido...