você aí que presta atenção nas coisas (tem o privilégio de, pois é a era dos privilégios e nem tô sendo irônica) sabe o quanto os itens mais básicos da vida de um ser humano se tornaram produtos. direta ou indiretamente você precisa cocriar comprar a tua paz, o teu skincare, a tua meditação, o teu pão sem glúten. (calma, não é pra remoer o capitalismo que eu tô escrevendo dessa vez).
no fim de semana passado (sabe-se lá qual, pois o momento que cê tá lendo isso aqui já se passaram alguns dias) fui pra orla do guaíba com meu kindle, meu celular, minha canga e um sonho: ter sombra e paz. a sombra a gente até se estapeia pra conseguir, numa cidade que não poupa esforços pra remover tudo de árvore quando for possível. o silêncio, a paz? daí são outros five hundreds. mas tudo bem, em algum momento consegui encontrar um montinho de gente também em busca de paz, preocupados em tomar seus chimas e falar num tom de voz suportável. não me entenda mal, eu não espero ir pra um lugar de alta movimentação num domingo e ter a vibe de um templo budista. o que me incomoda é que falta tanta coisa em outras áreas que todo mundo acaba se concentrando no curtinho espaço do círculo onde bate sombra. if only we had planejamento urbano.
isso não vai ser o tema da carta, é apenas uma coisa que tem martelado meus dois neurônios ultimamente. coisas como silêncio e espaço estão cada vez mais produto. cada vez mais prédios enormes são erguidos para abrigar espaços vazios e/ou pessoas ricaças que querem fazer uma cidade dentro da cidade (os projetos de uma certa empreteira melnick em porto alegre são intitulados “cidade”, tipo “cidade nilo”, um complexo predial enorme em fases de construção na nilo peçanha). se você tiver o milhão de reais necessário para tal, o silêncio, a limpeza e a plenitude de uma vida são colocados em uma prateleira pra gente comprar. no meu caso, pra não comprar.
a gente mora num país em que é preciso parcelar ovo de páscoa em 12x e ainda perguntam se não penso em comprar um imóvel. risos. muitos risos.
[interrompemos a redação desta carta para essa guerreirinha trabalhar]
te vendo um cachorro, de juan pablo villalobos, é um romance divertido sobre o cotidiano de um senhor de 78 anos, que atende pelo nome de teo, em um prédio repleto de idosinhos como ele. teo é o narrador da história e alterna entre as confusões que arruma com os condôminos, em especial com a síndica, francesca, e as memórias de infância: como o pai acabou saindo de casa, como a mãe sofreu, como ele se tornou taqueiro (uma pessoa que faz tacos).
a síndica teima com teo que ele está escrevendo um romance e ele nega isso a todo custo. ela também coordena um clube de leitura bastante peculiar e importuna teo para que faça parte desse grupo.
outra coisa curiosa sobre teo, e que deixa a história mais engraçada (se você ler, você vai rir, eu garanto) é que teo não desgruda da teoria estética, do adorno, e volta e meia usa citações desse livro para “espantar” a chata da francesca ou para implicar com willem, um mórmon que insiste convertê-lo à palavra de dels.
muitas coisas me marcaram nesse livro e, ÓBVIO, que já estou dando jeito de ler absolutamente tudo do vilallobos (em outra oportunidade talvez comente ninguém precisa acreditar em mim, muito bom também). umas frases anotei no meu caderninho: “não existe posteridade pra todos, a memória do mundo não seria suficiente” e um pouquinho mais adiante “a vida precisa selecionar. e nisso ela é implacável”.
somos todos protagonistas, mais do que nunca, de um filme chamado nossa vida, nossa especialidade em sermos nós. fica a questão: para quem é a tua posteridade? já falei em algumas cartas que sou expert em esquecer. por isso, as cartas que escrevo, assim publicadas para o mundão da internet, só visam uma leitora no futuro, uma outra sue assim como essa, embora mais caquética e talvez mais reclamona (imagina).
na página 37, encontrei, sem procurar, a frase de schönberg que me lembrava minha mãe: quem não procura não acha. a teoria estética estava embutida entre as memórias de salvador novo e as de fray servando, na seção de história. schönberg não teria gostado disso, nem adorno, nem minha mãe: quem não procura também acha.
te vendo um cachorro, juan pablo villalobos na tradução de sérgio molina
procurar, não procurar. encontrar algo quando não se está procurando. procurar algo e encontrar um troço outro no meio do percurso. a busca é sempre o motor, é o que importa.
acho que posso encerrar por aqui. faltou o assunto (devo ter perdido ao longo do dia), eu tô cansadinha e meu único foco está no feriado e espero que você também esteja de olho nele.
recomendações
os curtas da suzan pitt, na MUBI, estão imperdíveis. ô troço doido! aqui tem o link de joy street completíssimo no youtube.
sorry we missed you foi o primeiro filme que assisti junto com o clube de cinema de porto alegre. em seguida veio a pandemia e acabei não me associando naquele momento. reassisti o filme na data de hoje e continuo achando uma super produção de como o sistema capitalista destrói tudo o que toca.
musiquinha
tá difícil de encontrar o amor líquido nas caçambas de lixo dos apps e essa música expressa demais o sentimento.
ruído branco
sigo vendendo as minhas veias poéticas abertas na américa latina e no mundo inteiro através do site da gênio editorial. adquira seu ruído branco e faça parte dessa grande comunidade de leitores de minha pessoa. nas redes, você pode me seguir na arroba @suue_rr. o perfil é fechado, mas sou gente boa. o mundo que é doido demais.
por hoje é só
socorro deus
sue ⚡
Total Ilha das Flores, né?! Tô curioso, pelo que você disse e pelo que busquei depois parece bem legal mesmo ;)))
Adorei a narrativa da aventura à beira do Guaíba, que segundo o Wander Wildner tá podre... o humor sempre me pega! Que frase maravilhosa "não existe posteridade para todos, a memória do mundo não seria suficiente", tipo uau, né? Não conheço JP Villalobos, dei uma busca no app BibliOn e vi que tem alguns, já reservei o do Teo ;)))