A repetição é um lugar quieto e confortável
Aceite desafios! Saia da sua zona de conforto. Miséria, inflação, mudanças climáticas, guerra conduzida por um bando de homem europeu branco insuportável, racismo, machismo, violência, homofobia, transfobia, estresse ocasionado pelos boletos que você não consegue pagar. Se isso é a zona de conforto, então eu quero é sair mesmo.
Há muitos anos li qualquer coisa sobre por que as crianças gostam de assistir o mesmo filme ou ouvir a mesma história várias vezes. Eu não lembro do texto, mas era algo do tipo: as histórias repetidas dão uma sensação de alívio, pois mesmo vivenciando as emoções do desenrolar da coisa, você também tem controle (talvez essa não seja a palavra) do que sentir, pois vai acabar do mesmo jeito que a última vez.
O saber como tudo acaba nos dá uma segurança que faz com que retornar àquele lugar, àquela história, seja reconfortante. Num mundo de tantas incertezas, é bom saber. é bom ter certeza. É bom controlar o que a gente vai sentir. É por isso que, e aqui me repito!, na infância eu li várias várias várias vezes o conto A roupa nova do imperador, do Hans Christian Andersen, e umas vinte mil vezes a edição da Scipione para As mil e uma noites, adaptada pela Julieta de Godoy Ladeira. Também gastei de tanto ler um gibi da Disney com a história de Alice no país das maravilhas.
Tenho certeza que já contei muitas dessas coisas aqui em outras situações. Uma certeza vívida. Porém, é isso o que estou conseguindo oferecer agora. Nada de surtos criativos sobre museus, nada de histórias mirabolantes sobre obeliscos desenterrados no Egito. Apenas palavras que se dobram umas sobre as outras, remoendo a memória, remoendo o que tranquiliza.
A leitura é pra mim, como é pra muitos, um exercício do sentir (já falei sobre isso também). Por isso, convido você a pensar sobre o lugar para onde você vai quando precisa que tudo fique bem. Esse lugar existe, mesmo que você nunca tenha pensado sobre isso.
A maioria das escritoras e escritores, em algum momento da vida, quando não a vida toda, revisita sua biografia e a escreve em forma de livro mais ou menos verdadeiro (porque a objetividade sobre si está fora de cogitação) ou em forma de ficção. Isso aconteceu com o escritor português Valter Hugo Mãe, no livro Contra mim. Valter, que já é a delicadeza em pessoa, divide com seus leitores a magia de crescer, a magia de fazer parte de sua família, entre outras coisas, como conjecturas sobre a tristeza:
Ando, a vida inteira, sobretudo à caça de satisfação para uma angústia constante que se prende a tudo, a ter e não ter, sentir que nunca nada está completo, que nunca tempo algum é suficiente. Falta-me tempo, quero mais, e quero gente e quero corresponder, pertencer genuinamente a cada lugar e melhorar os lugares, e melhorar tudo, e ser um pouco feliz no meio de tanta coisa, tanta coisa que nem entendo, não chego a conhecer, não sou sequer inteligente o bastante para as aventuras todas. E digo angústia porque fica no ar um lado mais existencial e filosófico do que a constatação sempre tão violenta da tristeza, alguma tristeza, e a vida faz-se de andar entre alguma tristeza e procurar saída (MÃE, 2020, p. 80).
Quando as coisas ficam muito coisadas, é comum que a gente faça de si um caracol, enrodilhados em nossas próprias coisas, traumas, alegrias e superações. A infância surge como um lugar paradisíaco, intocável. Lá, fui feliz. Falando em histórias que se repetem muito, lembrei esses dias de uma coisa que há tempos não pensava.
Não vou fazer a genealogia da minha família nessa carta, mas desde que nasci eu já tinha irmãos (bem) mais velhos do que eu, dos casamentos anteriores dos meus pais. Pois bem. Tudo isso pra falar do seu Trajano. Ele era sogro da minha irmã e eu amava passar o tempo com ele. Convivi pouco com meu avôs por parte de mãe e pai e o seu Trajano era uma figura importante nesse sentido. Todos os fins de semana que visitávamos minha irmã, eu ia direto pra casa dele e da dona Emi, sua esposa, e pedia pra ele contar a história da formiguinha. Eu não lembro muito bem, mas era assim:
Ele pegava na palma da minha mão e dizia: "aqui tá a formiguinha". Ela ia subindo, encontrando outros seres ao longo do caminho fazendo perguntas e subia até chegar mais ou menos na altura acima do cotovelo, quando se encontrava com deus. Nesse ponto, o auge da história, ela fazia uma pergunta pra deus, que eu não lembro, e deus a esmagava. Formiguinha alcoviteira. Agora já não sei se ela perguntava algo ou fofocava algo. Maldita memória que deixou isso escapar.
Não sei se o que me atraía na história era uma maldade infantil de ver a formiga se lascar ou se eram os dedinhos do seu Trajano subindo pelo meu braço fazendo cosquinhas, sei lá. Só sei que todo fim de semana lá estava eu pra infernizar a vida dele, pedindo pra que ele contasse essa história.
Mais uma vez, é bom saber. Ouso dizer que é maravilhoso saber! Por isso que releituras são tão importantes. Eu nem me estresso com o fato de que existem histórias novas lá fora na fila de espera. Releio coisas, ouço a mesma música mil vezes, assisto o mesmo filme mil vezes (Netflix que o diga, acho que já assisti Inside mais de 10 vezes). Poder sentir quase as mesmas emoções a cada vez é a melhor das sensações, com o bônus de saber como tudo acaba. A novidade (a mudança) é o motor de estarmos vivos, mas a repetição é paz.
Por isso acho que meu gênero literário preferido é a poesia, mesmo que leia mais narrativas. A poesia é o caracol se enrola em si mesma, ela circula, abraça. Às vezes perfura.
No livro Extracción de la pedra de locura (1968), a poeta argentina Alejandra Pizarnik diz:
Pero el silencio es cierto. Por eso escribo. Estoy sola y escribo. No, no estoy sola. Hay alguien aquí que tiembla.
Vamos ao próximo tópico.
Falando em memória, espaços de conforto e recordação, recomendo o livro Baú de espantos, do poeta Mário Quintana. Ele não é o meu favorito, mas eu gosto muito das coisas que ele escreve. Dá uma sensação boa de que a poesia envolve sem ferir. Isso pode ser legal.
Estou tentando me apegar a alguma narrativa, mas ando ocupada demais tentando abafar algumas histórias que me perseguem. Enfim, vou respeitar o tempo de não estar com cabeça pra ler alguma coisa. Sabe o que cai muito bem nesses casos? O Bolsonaro Reler algum livro bacana.
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O disco novo do Placebo tá na área e é uma perfeição. Ouçam Never let me go!
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