Cinema, livros e a tentativa de não fugir dos trilhos
Olá, leitores!
Espero que estejam curtindo as edições desse bonde sem esperança que tenho o prazer de redigir semanalmente. Essa publicação está cheia de nuances, vem comigo!
Cinema e streamings: nós gostamos do que gostamos?
Parece até título dos livros do Cortella, mas é apenas meus dois centavos reflexivos sobre cinema e streaming, prometidos em resposta ao Mauro Póvoas. Depois que ele lançou a questão "tu não vê mais filme?", fiquei super pensativa sobre o tema. Eu adoro cinema, não só o formato, mas ir no lugar mesmo, e de uns anos pra cá tenho conseguido assistir muita coisa legal nas telonas. Até que veio o covid, mas essa história a gente já conhece.
Mesmo assim, fiquei ali remoendo a pergunta: por que eu assisto tanta série e ando tão sem paciência para filmes? Bem, com certeza não faltam filmes maravilhosos no mundo, mas nesse quesito eu sempre preciso do empurrão de alguém (aceito recomendações, fica a dica). É muito raro eu assistir um filme porque sim, ainda mais esses que ficam disponíveis nos Netflix da vida.
Na outra newsletter, comentei que o gosto por séries poderia depender de como esse novo formato entrou nas nossas vidas. Na verdade, as séries (pensando nessa produção majoritariamente estadunidense) começaram a fazer parte do cotidiano de forma bem sutil, com programas como Alf, o ETeimoso, ou a Super Vicky, nos anos 80, ou até mesmo antes disso, não fui pesquisar o assunto, tô puxando tudo pela memória.
Apenas quando eu tinha uns 16 anos é que fui saber o que eram as séries tal como conhecemos hoje, graças à TV a cabo. Não que eu tenha sentido uma mudança radical na minha preferência, pois continuava curtindo filmes. Mas percebia que havia novos elementos nessa equação. Dava para consumir mais conteúdo, nesse caso mais séries, e mais séries = mais histórias, no mesmo espaço de tempo dedicado a apenas um filme.
Outro ponto importante é que os streamings, me parece, nos dão essa ilusão de que escolhemos tudo e que podemos ter todos nossos desejos atendidos a um click de distância. Mas não é bem assim. Muitas vezes, passamos mais tempo tentando encontrar algo do que propriamente assistindo. Acho que as séries nos confortam nesse sentido: você vê uns episódios, acha legalzinho e continua, pois tá tão difícil achar algo realmente bom. Os filmes em streamings como Netflix, Amazon e HBOmax acabam sendo muito similares: enredo, desfecho, até mesmo a fotografia é quase igual. E as séries também. Não há muito como fugir, a não ser que você busque canais muito alternativos.
Dito isso, não sei se realmente gosto das coisas que assisto ou se elas simplesmente estão ali, disponíveis, fáceis - de acessar e de compreender. Saio em busca de um sentimento de UAU a cada filme e série, mas na maioria das vezes me decepciono. Para piorar, no momento que você começa a assistir determinadas coisas, o algorítmo, sempre ele, começa a filtrar a programação para você. Ou seja: você é livre, mas dentro de onde a plataforma permite que você seja. Livre, mas só até ali.
Na carta anterior, mencionei o filme Playdurizm, que assisti durante o Fantaspoa.Aqui está a lista 2021 dos filmes internacionais, filmes ibero-americanos, animações e especiais. Na categoria curtas, o festival também contou com produções nacionais, internacionais live-action e internacionais animação. Não se esqueçam de acompanhar o site do Festival para não ficar de fora em 2022.
Eu assisti praticamente todos os curtas live-action, o que explica um pouco a minha falta de paciência com histórias mais longas. Fico um tanto desconfortável em admitir isso, pois ok que a gente deve se atualizar nas tecnologias e novos formatos, mas se impacientar por prestar atenção em duas horas de filme aí já é demais. Descobri, zero surpresas, que preciso aprender a me concentrar no aqui agora de filmes, séries e livros.
Tudo fica intermediado por essa porcaria de redes sociais (qualquer uma). A gente sabe que não vai encontrar nada de edificante, maravilhoso e revolucionário, mas fica lá conferindo o feed. Isso não quer dizer que não haja coisa bacana para se ver no Instagram ou no Facebook, ou que apenas a informação intelectual é válida. Todo mundo precisa de uma bobagenzinha pra descontrair.
Para nós, reles mortais, dificilmente nossas vidas vão sofrer uma reviravolta via direct message, então não precisa ficar olhando esse treco de cinco em cinco minutos, oras! Em outra oportunidade, quero conversar com vocês sobre essa necessidade que o capitalismo inventou de que a gente tem que estar sempre fazendo alguma coisa. Até o nosso lazer esses crápulas conseguiram roubar. Isso é outra história.
Essa colagem é de minha autoria, assim como todas as imagens que abrem cada edição
Penetra surdamente no reino das palavras
Bem, acho que já está mais do que na hora de falar um pouco sobre livros. Apesar de passar por alguns momentos de ressaca literária (tipo quando terminei a poesia da Louise Glück ou o livro do Campos de Carvalho que já comentei aqui, A lua vem da Ásia), estou sempre em busca de coisas para ler. Nem sempre é fácil embarcar na história, já deixei muitas coisas pela metade esse ano por não conseguir abraçar o que estava se desenrolando.
No momento, divido meu tempo entre o romance Fractura, do escritor argentino Andrés Neuman, e a tese de Gonçalo M. Tavares, Atlas do corpo e da imaginação: teoria, fragmentos e imagens, publicada no Brasil esse ano pela editora Dublinense, para a alegria geral de quem ama o autor.
O desafio de Fractura é por ser em espanhol - o meu anda meio enferrujado, então a leitura se dá de modo mais lento. Isso não é um problema, pelo contrário, me ajuda a conter a ansiedade de colocar fim no livro. A história conta a trajetória de Yoshie Watanabe, um sobrevivente da bomba atômica. Isso é apresentado de modo gradual, pois o livro começa justamente com a fratura: um terremoto. Os capítulos alternam esse narrador que mostra a vida de Watanabe mais velho, enquanto os outros capítulos são contados pelas mulheres que se relacionaram com Yoshie ao longo dos anos. A história é bem fluida geograficamente: Paris, Nova York, Buenos Aires, Madrid e Tóquio são alguns dos locais por onde andou o sr. Watanabe.
O que eu mais estou gostando nesse livro é a relação das pessoas com as suas memórias - individuais e coletivas - e como é complexa a questão da tragédia mundial. Porque, no fim, existe um entendimento do evento na ordem estatística, mas pouco se pensa sobre os sujeitos que sofreram esses traumas. Cada relacionamento de Yoshie com determinada mulher leva a um relacionamento com um grupo de pessoas, que pensam a si mesmas e a sua sociedade (leia-se nação) de uma determinada forma, esse também é um ponto bem legal. Aqui vai um trecho para vocês entenderem um pouco do que estou falando:
El señor Watanabe contempla ese catálogo de instrumentos derrocados. Se agacha a examinarlos y los cuelga. Ninguno parece haber sufrido daños irreparables. Ahora bien, se corrige, ¿hasta qué punto un daño es reparable? ¿No valdría la pena hacer algo diferente? ¿Por qué disimular los desperfectos en sus banjos, y no integrarlos en su restauración? Todas las cosas rotas, piensa, tienen algo en común. Una grieta las une a su passado.
Algumas páginas depois, lemos:
El terremoto de ayer, lee con estupor, puede haber desplazado un par de metros al país entero. Y trasladado diez o quince centimetros el eje de rotación del planeta. Nada pasa en un solo lugar, piensa entonces, todo pasa en todas partes.
Enfim, essa é a vibe. Ainda falta um bocado para chegar ao final, é um tijolinho. Estou lendo no Kindle, mas a versão impressa tem 496 páginas (kkkrying).
Eu estava aqui pensando: essa newsletter vai ficar grande... e vai mesmo. Se eu parar agora, corto uma parte importante do que gostaria de falar sobre. Quem precisa fazer outra coisa, aí vai uma dica: marque o email como não lido. Assim, você vai encontrar com mais facilidade quando quiser terminar. Essa é uma estratégia que eu uso quando quero ler a edição da newsletters que assino com mais atenção e não quero que se perca no mar de emails abertos.
Seguindo...
O meu caso de amor com os livros do Gonçalo M. Tavares começou em 2019, quando estava na casa da minha prima e me deparei com Mateo perdeu o emprego. Eu já havia lido uma resenha sobre o livro em alguma edição do Suplemento Pernambuco ou Jornal Rascunho, não lembro. Resolvi dar uma chance e agora tudo o que encontro dele eu leio, compro, faço propaganda. Nesse post do blog We can be readers tem tooooda a história sobre minhas leituras de Gonçalo.
Atlas do corpo e da imaginação, no entanto, é um livro teórico, mas que conserva a linha de escrita e de pensar do autor. Como o título já entrega, Gonçalo mapeia o corpo dentro da materialidade e também no âmbito imaginário, e o próprio imaginário. O texto é complementado pelas fotografias do grupo de artistas plásticos Os especialistas.
Estou recém no segundo capítulo, mas esse é o tipo de livro para passar muito tempo envolvida, pois cada página te leva a muitas reflexões. Vamos aos exemplos. O primeiro capítulo se chama O corpo no método, e o primeiro item, Espanto e fragmento, começa pelo ato de questionar. Gonçalo parte de outras vozes para construir o início de sua investigação, e ao citar Steiner a respeito de Heidegger (sim, é filosofia pura), lemos: "questionar é a tradução do espanto em ação". Gonçalo prossegue:
Não basta, pois, o espanto imóvel, o espanto contemplativo, precisamos de um espanto agressivo, que ameace, que questione. Um espanto que sabe para onde vai. Como diz uma das personagens de Musil: é "tão simples ter força para agir e tão difícil encontrar um sentido para a ação!"
Lá pelas tantas, ele fala algo sobre a repetição e o questionamento real. Resolver uma equação, por exemplo, seria a repetição de algo que já se sabe. A verdadeira interrogação é direcionada para aquilo de que não se tem ideia. Um incógnita, de fato. É dessa forma que os assuntos do corpo, da beleza, da guerra, propriedade, história, discurso e tantas outras viagens vão se desenrolado ao longo das 523 páginas da obra.
Assim como Fractura, mas por diferentes razões, esse livro vai demandar um tempo absurdo. Tenho certeza de que será uma ótima estratégia para controlar os níveis de ansiedade e simplesmente curtir o trajeto, que é bem punk! Já deu para perceber que eu tenho uma pira nessas coisas da pergunta e da curisidade e já queria ter colocado o Gonçalo nas edições anteriores, mas resolvi segurar um pouco.
Não vou me alongar mais, gente. Aqui estão dois momentos do livro que curto bastante, embora tenha muito mais trechos sublinhados e eu adoraria ficar falando por horas, mas não temos horas para isso, né, mores.
É isso! Espero que tenham curtido essa edição. Pensei que ia ficar meio caótico de entender, mas, no fim, "é sobre isso": a nossa relação com o tempo, como nos sentimos diante de certas situações: trabalho, lazer, o nada.
Sigam-me os bons!
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A arte de pedir
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É sempre bom reforçar que você pode responder diretamente esse email. Inclusive, pode sugerir pautas para as próximas cartas. Recebi algumas mensagens e pedidos de pauta para essa edição, mas achei que ia ficar muito disperso. Na próxima, xá comigo que escrevo sobre as indicações e pedidos de vocês!
Se cuidem, gente.
Um abraço com uma pff2 por cima da outra, só para garantir.
Suellen <3