“felicidade é aceitar o onde” - escrevi esses tempos numa mensagem de whatsapp para mim. achei o verbo “aceitar” meio preguiçoso ou derrotista, não sei, mas olhando assim escrito, penso que faz sentido. a felicidade é essa aceitação, o contentamento é essa aceitação do onde. esse “onde” pode ser real (a sua casa) ou metafórico (o seu ponto na estrada da vida). não precisa elaborar mais do que isso.
escrevo enquanto esqueço
mais do que uma escritora que registra a vivência, percebi que sou especialista na arte da esquecer. é impressionante a facilidade com que eu apago vários anos da minha vida pelo simples fato de não serem mais relevantes no tempo presente. há aquela história de que nosso cérebro não consegue guardar todas as memórias, então vai negociando, liberando espaço para que a gente possa lembrar de um meme de 2008 enquanto engaveta um trauma vivido semana passada. na arte do esquecimento eu arraso, esqueço tudo sem dó, não ver é não sentir. daí invento uma newsletter onde escrevo aquilo que quero manter, uma autoficção realista até demais, um compartilhamento [des]necessário das vísceras, mas é que eu também não quero esquecer tudo, apenas o suficiente. por isso há (muitos) momentos em que não gosto de falar do passado, porque aquela pessoa definitivamente não existe mais, embora tenha me trazido até aqui.
a metamorfose dos pássaros — um filme-poema ou um poema-filme
o que vem à mente quando a palavra Portugal aparece (além de colonização e genocídio de povos autóctones)? pra mim, melancolia. não importa o gênero, a idade, a classe social de um artista português, a marca da melancolia é carro chefe de sua produção. de todos? talvez não, pois todos não conheço. mas pega aí o valter hugo mãe, o gonçalo m. tavares, a matilde campilho, a inês pedrosa. tudo melancólico. portugal negocia o seu passado colonizador, salazarista, perpassado por uma ferida de ser o filho pobre da europa depois da glória, não sei. a verdade é que quando estou diante de um livro/filme português, sei o que esperar
a metamorfose dos pássaros (netflix), com roteiro e direção de catarina vasconcelos, é um desses não raros momentos em que a poesia atinge sua forma plena como imagem.
[Henrique] Triz. Sempre me encantou esta forma curta e delicada como gostavas de ser tratada. Estou num lar, estou bem, não te preocupes. Fui eu que decidi. Ontem, a nossa casa foi vendida. Preciso de me desancorar, ficar mais leve para ascender aí, onde tu estás. O meu corpo já não me responde. Quando era jovem, lembras-te? Ele era calado e eu nem dava por ele. Agora, ele existe mais do que eu. Hoje, os nossos filhos começaram o trabalho de desmontar a nossa casa. Encontrar-te-ão a ti, eu sei. Nestes últimos anos, tentei manter as plantas, mas nunca mais tiveram tantas flores como quando tu as cuidavas. Tentei manter as coisas nos sítios que tu as tinhas, mas parece que os objetos têm vidas que desconheço. Já nada é como quando tu estavas aqui. Tentei, mas nunca consegui fazer igual.
henrique é apenas uma das muitas vozes do filme, pois é mais sobre palavras, vozes e enfoques do que sobre vários personagens em cena e interagindo. no começo, boa parte desse monólogo foca diretamente apenas os olhos de henrique, olhos velhinhos e piscantes. depois, a câmera se volta para alguns objetos, já que o homem passa a falar desses objetos e sua inabilidade de cuidá-los.
nas metamorfoses, descobrimos muitas coisas sobre henrique e maria beatriz, ou apenas triz, além de seus filhos jacinto, pedro, joão, nuno, teresa e josé, até chegarmos às profundezas de jacinto, pai de catarina (a diretora do filme) que, na verdade, se chama henrique (isso não é spoiler, esse não é o tipo de filme que possua tal coisa).
uma elaboração sobre casa, passagem do tempo e da vida em texturas, sons e cores belíssimas.
vale a pena visitar o site oficial do filme.
outros terrores
a casa lobo é um filme chileno em stop motion dirigido por cristóbal león e joaquim cociña e coescrito por alejandra moffat disponível na plataforma MUBI. a história é inspirada em um evento real ocorrido na colônia dignidad, onde uma comunidade vivia isolada e sob o controle do alemão paul schäfer que, segundo relatos, transformou o local em espaço de tortura a serviço de pinochet. as imagens são encantadoras e assustadoras e a história transmite o pavor da fuga da tirania e a impossibilidade de escapar de símbolos de poder.
fim da newsletter
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Reassisti Divertidamente esses dias e me vi na sua mente, observando as bolinhas de memória sendo arremessadas ao esquecimento. E não conhecia os filmes citados, e também não tinha notado a melancolia portuguesa... rs adorei. Estão na lista!
Chocante como esse filme vira e me é aparece para assistir. Deve ser um filme fantástico, cheguei a tirar ele da minha lista, mas agora me rendo a insistência dele aparecer tanto pra mim.
Bora assistir.