Ao que parece, toda criança tem a mesma mania de arrancar a casquinha da ferida no joelho quando a coisa tá quase sarando. Deve ser porque, quando crianças, não nos aguentamos com as mãos desocupadas, daí a impossibilidade de deixar uma ferida em paz. Arrancar a casquinha no joelho possui um prazer meio inexplicável de provocar uma ardência que não é o suficicente pra te matar, mas o suficiente pra te fazer sentir algo. Crianças são intensas, não?
Resolvi arrancar a casquinha com esse texto e espero que as palavras não me traiam e consigam expressar um pouquinho o que eu estou sentindo nesse momento.
Falar sobre uma coisa que dói profundamente é uma das maneiras de fazer com que essa coisa seja resolvida, tá aí a terapia que não nos deixa mentir. Porém, eu sou uma pessoa que escreve, sendo assim, escreverei sobre.
Relacionamentos, de qualquer natureza, são difíceis. Isso é das verdades mais difundidas e aceitas, uma das poucas coisas que todas as pessoas do mundo concordam, mesmo que digam “ah, se relacionar é fácil, difícil são as pessoas”. Yes, honey, difícil são as pessoas, mas pra se relacionar você não precisa de farinha e dois ovos. Relacionamentos e pessoas são uma coisa só.
Dito isso, se se relacionar é difícil, encerrar uma relação é mais ainda. Eu achei que não fosse ser tanto, mas é. Por que achei que não seria tão sofrido? Pelo simples fato de que, quando duas pessoas adultas num relacionamento saudável percebem que não dá mais, o mais lógico é encerrar os trabalhos. O lógico acontece, mas o coração não acompanha.
Depois de quase 13 anos de convivência, eu e meu ex-parceiro decidimos (eu meio que não muito convencida disso) de que era melhor parar por aqui. Eu não conseguia enxergar com clareza antes, mas agora sei que era o único desfecho possível.
É claro que sofri que nem uma desgraçada. Se vocês pegarem as cartas de fevereiro até, sei lá, junho, vão ver que o tom da escrita estava mais melancólico do que o usual. E precisava ser assim, eu precisava me derramar em algum canto.
Mas a bofetada real, aquela que ardeu e me empurrou pra frente do computador pra escrever isso aqui, veio em uma edição da newsletter que recomendei na carta anterior, the stories. O tema, uma mente sem lembranças, é abordado a partir do famoso filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças, protagonizado por Jim Carrey e Kate Winslet. Lá pelas cansadas, vem esse parágrafo:
No decorrer da história, vemos que o relacionamento dos personagens acabou por dificuldade de convivência e não por falta de amor. Os dois se amavam, mas não deram certo juntos.
É… Mas quem é que consegue ter maturidade quando acaba de levar um pé na bunda?
Brincadeiras à parte, sabemos que despedidas sempre são difíceis. Porém, tentar esquecer o sofrimento sem encará-lo é apenas uma forma preguiçosa de eternizar a dor.
Aquele “apenas uma forma preguiçosa de eternizar a dor” me bateu mal. Me pegou no âmago, sabe? Pois, na minha mente, eu nunca estava, de fato, encarando o sofrimento. Me esquivava nas músicas, na curtida do fim de semana, no cinema. Cada pedaço do meu dia era ocupado com algo que me fizesse não pensar, pois estar sozinha e pensar era simplesmente demais pra suportar.
Porém, eu estava lidando. Fugir é lidar, às vezes. E não é como se estivesse me enganando a respeito de tudo o que estava acontecendo. Sabia que o ciclo havia se encerrado, era só estancar as emoções. Fácil.
Porém [2], não é fácil e junto com as coisas que precisam continuar, tem o atravessar o túnel só lâmina. Essa travessia não tem hora certa pra acabar e acho que isso me dava muito mais ansiedade do que propriamente o sentimento de perda - não necessariamente do outro, mas de mim mesma.
Uma pessoa que passa tanto tempo com a gente se torna, de algum jeito, uma régua da nossa existência. Perdi as minhas referências, minha linguagem, o meu comportamento e até os meus apelidos no momento em que deixei de estar com quem estava. A gente sente saudade do outro, mas também sente saudade de quem éramos quando estávamos com o outro.
Às vezes bate uma agonia no estômago? Sim. Mas está tudo sob controle e entender que não tem nada de retrocesso chorar um pouco de vez em quando ajuda muito. Entender que não é uma lágrima que invalida meses de terapia, conversas e arroubos de raiva e sofrimento. Ah, e também é importante entender que sofrer não é sinal de fraqueza. E que se fui fraca um dia, não importa. Ninguém paga os meus boletos, num é isso que se diz?
Já estou vivendo outras histórias, buscando outras referências e, inclusive, pensando em mudar de casa novamente. Viver é empurrar o corpo pra frente e isso eu tô fazendo. Já não sou (tanto) mais a Leli, sou a Suellen, ou a Su ou a “Sui” (como algumas pessoas pronunciam o Sue). Impressão minha ou estamos de volta às aventuras com os nomes?
Mais adiante no texto da the stories, lemos:
Na vida, o desfecho nem sempre sai como planejado, mas, como somos uma coleção de memórias, nem o final mais trágico consegue estragar as lembranças do “durante”.
Tudo deu certo. Não existe essa de “pena que não deu certo”. Deu muito certo durante mais de uma década. Agora a vida vai continuar dando certo pra nós, cada um do seu jeito, com as suas vontades e sonhos.
Essa carta não um “olha só como sou maravilhosa, já superei tudo e estou ótima”. Essa carta é apenas um relato da minha experiência, uma observação mais ou menos distanciada de como estou (ainda) lidando com o fato de que estou sozinha de agora em diante. (E essa sensação não me assusta mais). Essa carta é uma tentativa de verbalizar e resolver.
Não falei na carta anterior que quando a gente nomeia algo a gente tem que lidar com esse algo? Pois.
Eu fico por aqui, espero que tenham gostado desse texto, que tenha servido de inspiração para encarar tudo aquilo que dói profundamente, mas que passa. Todo dia é sempre o último.
Um bêjo,
Sue
Muitíssimo obrigado por escrever esse texto, Suellen. Estou passando pela mesma situação no momento e você não sabe o quanto suas palavras me confortaram.
Também costumo fazer o mesmo, liberar o máximo possível da dor. Em vez de evitar, tento extravasá-la. Não sei se ajuda ou piora, mas sei que é a forma como lido no início. Sei que vai passar. Tudo passa e quando a gente vê sobram apenas boas memórias além de muito respeito e carinho por quem já amamos.
Sou muito grato por você dizer que "sim, tudo deu certo". Pois realmente a gente fica pensando muito sobre culpa, arrependimento, sobre o que podíamos ter feito diferente, ou não feito. Mas a verdade é que nunca é por "não ter dado certo" e sim porque "deu certo" e agora seguiremos dando certo em nossas novas vidas.
Dói demais. Uma dor tão forte quanto um luto. Até porque é isso mesmo. Em cada término nós vivemos um luto. A morte da relação, a morte da pessoa, a morte de nós mesmos. Mas, como bom seguidor do Absurdismo de Camus, sei do quanto há diversas mortes nossas em vida. E, para cada morte, há um renascimento. Renascemos por quem somos ainda mais fortes e capazes de lidar com novas relações.
Mais uma vez, muito obrigado. <3