oi
começo essa carta com a cabeça cheia de ideias e com a esperança de conseguir comunicar tudo aquilo o que penso e o que sinto. ao mesmo tempo, me pergunto: sei eu exatamente o que penso e sinto? essa carta é sobre aceitar que qualquer coisa nessa vida é uma perda, pois o âmago das coisas não nos é permitido. é um local para o qual nos orientamos, mas não tocamos de fato. essa carta é sobre como as coisas são sempre colocadas de modo incompleto. sobre incompletudes e nossa aversão a elas eu já falei bastante. hoje só tô aceitando que existem e quero fazer o melhor com aquilo que me é permitido conhecer.
vem comigo!
A imagem de uma estátua de Napoleão surge na tela, enquanto uma voz fala, em alemão, sobre o desejo que algumas pessoas têm de se tornarem estátuas um dia (ou algo do tipo). Assim começa o filme A viagem de Pedro, escrito e dirigido por Laís Bodanzky (que também dirigiu Como nossos pais e Bicho de sete cabeças) e estrelado brilhantemente por Cauã Reymond. Mais um filme exibido em uma sessão maravilhosa do Clube de Cinema de Porto Alegre.
O quadro se amplia e vemos um menino pequeno, D. Pedro II, e seu pai, D. Pedro I tendo sua última conversa antes que Pedro pai fuja zarpe para Portugal a fim de tretar com seu irmão, Miguel.
O filme trata dessa travessia de D. Pedro I, coisa da qual pouco se tem registro oficial. O que aconteceu no intervalo de tempo entre a partida do Brasil e a chegada em Portugal não está muito claro.
Pergunta: é possível conhecer as coisas com clareza? Eventos acontecem, registros são feitos, mas a essência… dá pra tocar? Um pedaço de papel pode dizer oficialmente que D. Pedro I tomou determinadas decisões, realizou determinadas tarefas durante seu dia. Mas isso é tudo? Não estou dizendo que tudo é dúbio e nada é apreensível, acho isso muito cínico (no sentido filosófico da coisa). A questão é que existe a dimensão humana que escapa ao registro histórico ou ao próprio registro da nossa compreensão sobre as coisas. Não é isso o que acontece nas sessões de terapia? Depois de várias semanas, a gente diz uma coisa e olha (com os ouvidos) praquela coisa e pensa: nossa, era só isso! Era isso o tempo inteiro e eu ficava desviando.
Sobre o filme só posso dizer: assistam. Fui com a expectativa bem baixa e saí da sala totalmente absorta pelas escolhas maravilhosas de Laís.
Primeiro, a linguagem: no filme tem gente falando português PT e BR, inglês, francês, alemão, além da linguagem dos africanos escravizados que mistura português e elementos de suas línguas maternas. Cada grupo de pessoas interage de um jeito e ter acesso a essa multiplicidade de linguagens recria muito bem a atmosfera do que pode ter sido uma viagem na Warspite - nau inglesa que se encarregou de levar Pedrito pra sua terra natal.
Segundo: o movimento da câmera é sempre ritmado, afinal o mar possui suas ondulações próprias, assim como Pedro I está passando por uma agitação interna e isso nos chega através da imagem.
Terceiro: a escolha de Laís para sinalizar o plano onírico da narrativa foi primorosa (isso eu não vou contar como ela fez, vocês vão ter que assistir).
Há muito tenho refletido sobre a questão da perda – de espaços, de pessoas, de referências –, e é sempre um movimento circular: tudo perpassa a linguagem, uma linguagem ampla, o existir no mundo com o corpo, antes mesmo de elaborarmos as coisas com palavras escritas ou faladas.
Antes que nossas gargantas pudessem produzir sons, os nossos corpos interagiam com as intempéries do ambiente, nossos cérebros assimilavam ameaças e vantagens. Antes da linguagem oral e escrita, a luta por compreensão foi corporal.
Quando a palavra (nas suas mais diversas manifestações) surge, ela já nasce fadada ao fracasso. A gente até pode pensar no contemporâneo “o que eu digo e o que você entende são coisas distintas”, mas acho que a coisa começou muito antes. Isso me faz lembrar de um poema da poeta polonesa Wyslawa Szymborska,
Conversa com a pedra.
Bato à porta da pedra.
– Sou eu, me deixa entrar.
Quero penetrar no seu interior
olhar em volta,
te aspirar como o ar.
– Vai embora – diz a pedra. –
Sou hermeticamente fechada.
Mesmo partidas em pedaços
seremos hermeticamente fechadas.
Mesmo reduzidas a pó
não deixaremos ninguém entrar.
Bato à porta da pedra.
– Sou eu, me deixa entrar.
Venho por curiosidade pura.
A vida é minha ocasião única.
Pretendo percorrer teu palácio
e depois visitar ainda a folha e a gota d’água.
Pouco tempo tenho para isso tudo.
Minha mortalidade devia te comover.
– Sou de pedra – diz a pedra –
e forçosamente devo manter a seriedade
Vai embora.
Não tenho os músculos do riso.
[…]
(Wyslawa Szymborska, Poemas, ed. Companhia das Letras, p. 33)
A conversa entre a pessoa lírica e a pedra continua até que, no último verso, a pedra declara: “não tenho porta”. Eu acho esse poema magnífico, pois expressa exatamente a inapreensão total das coisas justamente pelo limite imposto por tais coisas. Dói no fundinho da alma não entrar na pedra e compreender a pedra, mas é essa dimensão do desconhecido que a gente deve aprender a abraçar de vez em quando.
A poesia traduzida (pra mim) é uma das maiores provas de que a perda é o que há de mais humano. Quando leio um poema traduzido, meu corpo dói. Dói não poder saber as nuances da linguagem, a ambiguidade das palavras, dói não conseguir entender a sonoridade do poema na língua original.
Fico feliz demais que existam tradutores empenhadas em realizar essa travessia entre línguas de forma a entregar o resultado mais suave possível, mas sei que muito se perde. Quando leio poemas em inglês e, em seguida, suas traduções, vejo a perda concreta na minha frente. Se isso acontece com o inglês, imagine com uma língua como o polonês. Perder essa experiência dói. Ter acesso a uma parcela dessa experiência me conforta.
Volto à questão do registro histórico. Ele é possível, mas, assim como tantas coisas na vida, ele está repleto de furinhos, pois existe uma dimensão que não nos é permitida a entrada. O registro é um relato e um relato é feito por uma pessoa – a que escreveu o documento e, depois, a historiadora que o recuperou. Se é feito por uma pessoa, logo…
Já que falamos em poesia, compartilho alguns títulos que, volta e meia, ficam aqui na minha bedside table.
A poesia (quando a gente gosta muito) é garantia de retorno, dá pra afirmar que o retorno é a sua lei. Não se lê um poema apenas uma vez e isso tem a ver com o tempo circular que a poesia instaura/provoca/recupera em nós. Fiquei impressionada com a minha memória que recuperou, do nada, o poema da pedra de Wislawa. Fazia muito tempo que eu não tinha essa lembrança tão forte entre poema, poeta e temática.
Queridinhos da ala poética:
Todos os poemas, Paul Auster (já deixei registrado aqui que eu amo esse livro demais, chega a doer);
No one here,
and the body says: whatever is said
is not to be said. But no one
is a body as well, and what the body says
is heard by no one
but you.
(Trecho do poema White Nights, Paul Auster. grifo meu)
Poemas 2006-2014, Louise Glück;
my friend the moon rise:
she is beautiful tonight, but when is she not beautiful?
(Trecho do poema October, Louise Glück)
Além de Poemas, recomendo Um amor feliz e Para o meu coração num domingo, da Wislawa Szymborska.
Morrer só o necessário, sem exceder a medida.
Regenerar quanto for preciso da parte que restou.
Também nós, é verdade, sabemos nos dividir.
Mas somente em corpo e sussurro interrompido.
Em corpo e poesia.
(Trecho do poema Autotomia, de Wislawa Szymborska, livro Um amor feliz)
Tá de bom tamanho o rolezinho de hoje, né? Tenho outras recomendações mais pontuais que chegarão até vocês em forma de bilete. Vai ter filme, música e o tradicional teste edificante do Buzzfeed.
Se cuidem e aproveitem que amanhã é feriado!
Sue ❤⚡
Amei muito!