é manhã. ou é tarde. ou é noite. tudo externo a ti importa muito ou pouco importa. tu te sentes extremamente responsável por aquilo que abominas, por aquilo que amas. te sentes um pouco exausto, um pouco feliz, um pouco impreciso. buscas palavras, resoluções, um curativo rápido que não vem. o teu estômago também está cobrando a dívida? o meu nunca cessou. o importante é que, nessa hora do dia, eu vejo, a tua mão busca na gaveta imaginária essa carta volátil, essa carta que, para que tu guardes com toda força do teu íntimo, pode se perder entre tantos outros avisos inúteis. talvez marques essa carta com uma estrela ou com um coração. talvez essa carta nunca mais precise ser aberta, pois que já foi colocada dentro do teu tecido neural. eu não sei. esse é só mais um convite à descida e tu já estás descendo.
tenho pensado no sentido (meaning) das coisas, das palavras, das artes. escrevi no caderninho-diário: a arte é esse espaço entre o que é entregue e o que é compreendido.
não quero retomar (porque ficaria algo muito raso) o mictório do Duchamp e o quanto muitas coisas estão em xeque quando pensamos no valor do objeto artístico (inclusive já falei sobre isso em alguma das cartas). a grande questão que me pega muitas vezes é esse fator fascinante que a arte proporciona e isso só é possível na falta, no lapso. e o mais interessante é que a pessoa artista pensa que disse algo com muita clareza e isso acaba saindo dos trilhos. e é intencional que saia. por exemplo, ninguém perde seu tempo imaginando as interpretações de uma lei. ok, é difícil entender a linguagem jurídica e existem, sim, “brechas”, mas elas são de uma qualidade diferente.
lembro dos meus tempos de mestrado, quando descobri que o poema “A visita” , do Drummond, se tratava de uma visita real que Mário de Andrade fez a Alphonsus de Guimaraens. cheguei na sala da minha então orientadora e disse “não posso mais trabalhar com esse poema, ele fala sobre as coisas reais” e ela me disse: “isso não tem nada a ver, tu não podes acreditar em tudo que um escritor fala” (foram muitas outras coisas, mas quero encurtar a história). Drummond não queria entregar o real com esse poema, ele entregou uma filosofia da composição - minha dissertação foi sobre isso. da mesma forma, Drummond não entregou a sua vida na série Boitempo, mas a fabulação dessa pessoa poética anunciada no Poema de Sete Faces. como são bonitas as faltas, os lapsos, as cavidades. nosso cérebro está repleto delas.
esses dias, lendo Atlas do corpo e da imaginação, de Gonçalo M. Tavares, me deparei com um trecho que meio que me despertou para a escrita dessa news. ele diz assim:
O Homem, como Ortega y Gasset o descreve, “sente-se chamado a ser feliz”, e sente tal como uma exigência, a principal que coloca a si próprio: “vocação geral e comum a todos os homens”. No entanto, esse Homem – quando alcança esse estado, a que podemos chamar de satisfação, alcança também o lugar perigoso, lugar onde a existência pode parar. Uma das teses de O homem sem qualidades é, precisamente, a ideia de que “o homem satisfeito” é o homem que tem as suas ligações petrificadas, terminadas.
Gonçalo M. Tavares em Atlas do corpo e da imaginação, edição da Dublinense, 2021, página 131)
a satisfação de todos os desejos, o esclarecimento de todos os sentidos, a não-dúvida, o não-lugar para o salto de algo que é assim, mas poderia ter sido de outro jeito, é colocada como a nossa própria ruína, visto que a mudança é parte intrínseca de ser. resta saber se a falta, se esse salto, esse parêntese que surge no meio da frase, nos impulsiona para frente ou para trás – empurra o futuro ou cava o passado? eu não sei, tô jogando a pergunta pra vocês, assinantes desse bonde.
lá pelas tantas, em um tópico chamado recusa de ligações e imaginação, Gonçalo atesta:
Ver as coisas do mundo desligadas entre si é um ponto de partida para a imaginação, como se viu atrás [aqui Gonçalo se refere ao comentário sobre uma frase de Novalis: o papel do artista é ligar coisas opostas. quanto mais afastadas as coisas, quanto mais imprevisível sua ligação, melhor]. Se tudo está desligado, tudo pode ser ligado, sem qualquer ordem pré-definida.
idem, página 133
isso me remete a Bachelard, para quem o papel do imaginário é deformar o real.
o finde foi de leituras e releituras por aqui, tentando disfarçar ansiedade (a respeito de qualquer coisa) com literatura.
📚 Elvira Virgínia, livro de estreia da poeta e minha querida amiga Daniela Espíndola. conheci a Dani por ocasião de ter sido colega de trabalho da filha dela em uma escola particular aqui da capetal. além de descobrir seus escritos no auge da pandemia, outros caminhos aproximaram nossos laços, como foi a participação da Dani na Zine Marítimas. é muito bom ter contato com tantas mulheres escritoras fodas, talentosas, que trazem outras mulheres fodas, talentosas e maravilhosas pra perto de si.
o livro leva o nome da avó materna da Daniela, que morreu aos 103 anos, e possui muitas nuances: fala de tempo, amores, poesia, mulheres. os meus poemas preferidos são aqueles justamente sobre o tempo e um certo sentimento de inadequação em relação ao tempo de si e o tempo das coisas. eu super recomendo a Dani não porque é minha amiga, mas porque realmente me senti contemplada com essa poética. aqui vai uma estrofe de “fui, sou serei”:
sou o esboço, a ideia
o intento em vão
o vazio
o louco indigente que ninguém
nunca viu
o doente, transparente
o estorvo condenado a viver.
Dani Espíndola
📚 O senhor Valéry e O senhor Henri, de Gonçalo M. Tavares. ambos releituras e percebi que gosto muito mais do Valéry.
📚 O Amante, de Marguerite Duras. se eu tivesse que organizar um top 100 livros preferidos da vida, com certeza esse estaria na lista. é engraçado como eu registrei no Goodreads apenas a primeira leitura (em 2016) e essa, de 2022. porém, tenho certeza absoluta de ter relido O Amante em outros momentos. é uma história autobiográfica pesada, densa. pra mim, é muito mais sobre as condições familiares que empurraram Marguerite para o amante do que propriamente ele. o bom é que essa impressão pode mudar ao longo dos anos… a vantagem das cavidades deixadas pelas palavras! :)
📚 Anna Kariênina, de Liev Tolstói - cheguei na parte 4, faltam só mais 500 páginas. Uhull??
o dia tá cinzento por aqui e enquanto finalizo essa seção está tocando scottland’s shame, do mogwai, então meio que tipo: cara, essa música é perfeita pra indicar. não precisa agradecer não, viu, capaz.
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por hoje é só isso mesmo, galere. quem tá comigo desde o início dessa news, e já viu muitas transformações acontecerem, sabe que esse troço do não-dito, do vazio, da coisa que fica em aberto em tudo é uma das minhas grandes obsessões. agradeço muito que continuem tendo paciência pra pensar essas coisas comigo. pra quem chegou na última semana, bem vindes!
um bêjin,
Sue ❤⚡⭐
Achei curioso que toda a primeira parte da news parece conversar, e às vezes se contrapor, ao ensaio de abertura do "contra a interpretação". E agora preciso muito ler o Atlas, que tá aqui na estante e precisa logo ser visitado!