“no amor, não há substituto”. essa é uma fala de sr. chow no filme 2046, sequência do inabalável in the mood for love. se in the mood impera a sugestão de acontecimentos no centro da narrativa, 2046 explora a exposição de tudo o que acontece, ainda que kar wai siga o trabalho impecável de enquadrar muito bem os personagens de modo a mostrar/esconder o que deseja.
é claro que num filme a imagem, os diálogos, efeitos e trilha sonora formam um todo significativo. porém, nos filmes de kar-wai não é possível pensar em tirar o olho da tela. o visual sempre vai gritar alguma coisa e é preciso estar lá pra ouvir com os olhos.
antigamente, para se guardar um segredo, devia-se escalar uma montanha e, lá no alto, encontrar uma árvore, fazer um buraco e sussurrar o segredo lá dentro. depois, tapar com barro. assim, seu segredo ficaria guardado para sempre. essa espécie de crença aparece em ambos os filmes e é central em 2046. funciona como um mantra, uma prece, que senhor chow compartilha.
2046 é a história dentro da história, é a tentativa de chow de fazer um acerto com o passado através da escrita de uma história que se passa no ano de 2046. todos que vão para esse ano não conseguem voltar. em 2046, as coisas nunca mudam. chow está preso a um amor que se realizou por um período e desvaneceu e sabe que, embora encontre mulheres que lembrem sua su li-zhen, ela é única. por isso, “no amor, não há substituto”. o filme alterna entre a história que chow escreve e a que ele mesmo vive. é preciso entender que tudo está relacionado.
a carta de hoje é sobre o único tema presente sem ser necessariamente dito.
estante
carrego comigo o livro a música do acaso (music of chance), do paul auster. é uma edição desgastada, de 1992, que comprei num sebo por 13 reais (significa). acabo lendo no ônibus, para aproveitar os quase 60 minutos de ida e os quase 60 minutos diferentes de volta que consomem meu deslocamento. por ter o privilégio de sempre conseguir assento no coletivo (muito blessed), aproveito esse momento para ler ou ouvir música. isso quer dizer que, talvez, demore a concluir esse auster específico, mas isso dá um sabor diferente pra coisa. me faz apreciar ao invés de devorar. é bom não ser tão reativa.
nashe é um cara que recebeu uma herança após a morte do pai (o auster e os dinheiros milagrosos dele!) e, por xis fatores, decide percorrer os estados unidos de carro. sua vida muda completamente (ou assim parece) quando ele dá carona para um jovem estropiado cambaleante, jack pozzi, ou jack pot. até agora, os dois trocaram algumas informações pessoais e estão em nova york para um acontecimento importante. o trecho que vou colocar aqui, no entanto, se refere a quando nashe toma a decisão de seguir dirigindo sem rumo pelos unaires states:
a essência de tudo era a velocidade, a alegria de estar no carro e percorrer rapidamente as distâncias. isso se transformara num bem acima de qualquer outro, numa fome a ser saciada a todo custo. nada ao seu redor permanecia além de um momento e, como a um momento se seguisse a outro, era como se apenas ele continuasse a existir. ele era um ponto fixo num remoinho de mudanças, um corpo equilibrado em imobilidade absoluta num mundo que passava e desaparecia velozmente.
a música do acaso, auster, traduzido por marcelo dias almada
ao que tudo indica, algo vai dar ruim nessa interação entre nashe e jack. no entanto, como é da vontade de nosso querido auster, os acontecimentos são inevitáveis, pois:
tão logo um homem comece a se reconhecer em outro, não mais pode considerá-lo estranho. queira ele ou não, forma-se um vínculo. nashe percebeu a cilada latente que havia em tal pensamento, mas já mal conseguia evitar se envolver com aquela criatura magra e perdida. a distância entre os dois subitamente diminuíra.
(idem)
aproveitei para revisitar alguns livros, por exemplo, o baú de espantos, do mário quintana. estou relendo aos poucos. um poema, no entanto, me chamou atenção, pois dialoga com as noções de predeterminação, coincidências, destino que parece reger nossas vidas (é possível acreditar nisso? já falei em alguma carta: o sentido mágico das coisas é sempre dado a posteriori). o poema se chama “da fatalidade histórica”:
A bolinha que saiu na loteria
não saiu porque deveria sair precisamente ela
mas sim porque uma delas teria de sair
não podia deixar de sair!
Moral da História:
uma coisa — só por ter acontecido —
não quer dizer que seja lá essas coisas...
reli a poesia completa do cacaso, foi uma leitura culposa, sem a intenção de. encontrei um post no instagram com um poema dele e uma coisa levou a outra. um deles diz assim:
trago comigo um retrato
que me carrega com ele bem antes
de o possuir bem depois de o ter
perdido.
Toda felicidade é memória e projeto.
intitulei a carta polaroide porque quis escrever algo sintético, que coubesse em um espaço reduzido, mas que expressasse o instantâneo do cotidiano.
além disso, um dos significados da palavra também é “folha transparente que polariza a luz”. espero que a luz dessa folha chegue até o profundo de você.
bye,
sue ⚡
Unaires states e blessed são dois exemplos aqui kkkk
O visual parece sempre gritar algo, ainda que nem sempre a gente consiga ouvir, né... gosto do modo que no meio dos textos sérios sempre tenha um humor quase que de fundo, mas é sempre o que mais grita pra mim ;)))