Um obelisco, um elefante e tudo igual
Prólogo
No tempo em que o próprio tempo não havia, os bandos se deslocavam com necessidade e cautela. Seus olhos múltiplos funcionavam para que morrer não fosse ainda a hora. Desejavam sempre o céu. Levantavam as mãos para sentir a chuva que caía e percebiam que no alto existia um poder ainda inefável, impossível de medir. Desde então, buscaram o céu subindo nas arvores das quais desceram um dia e ergueram toda sorte de blocos que os aproximassem das nuvens. Enquanto o espelho das águas era capaz de refletir o semblante, o espelho dos céus refletia o avesso de cada um. A alegria do sol, a fúria das tempestades, o mistério da noite cativava algo dentro no peito daqueles que andavam. Tudo o que se construiu desde então foi para tocar o lado de dentro sem precisar rasgar a pele.
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Um obelisco é uma peça de concreto enorme, com uma base que se afunila até o ápice, onde está uma pirâmide (pequena claro). Essa construção tem origem lá no Antigo Egito - assim como muitas coisas memoráveis da nossa civilização, por exemplo: as pirâmides (grandonas), as bibliotecas e o vinho (não precisa de mais nada, né?). Decorados com inscrições hieroglíficas, os obeliscos são famosos e estão espalhados por muitos lugares, como: Buenos Aires, São Paulo, Washington D.C. (o maior e mais famoso) e por aí vai.
Colocados aos pares na entradas de templos, os obeliscos cumpriam uma importante função religiosa. Na mitologia egípcia, simboliza o deus do sol, Ra e tinha por função proteger as cidades de raios, tempestades e outras mazelas. Enfim, combater qualquer "energia ruim" (o jovem místico se atira pra tapar o umbigo do obelisco) que pudesse pairar sobre a cidade.
(Fonte: Wikipedias em inglês e em português)
Hoje quero compartilhar a viagem de objetos pesados, objetos que não cabem no drone da Amazon. Você vai conhecer (um pouco) a história da Agulha de Cleópatra que está no Central Park, em Nova York.
Tudo começou quando ouvi o episódio de This day in History class sobre o assunto (Episódio: A 3,600-year-old ancient Egypt obelisk is erected in Central Park, New York, January 22nd, 1881). Na minha cabeça, essas coisas eram construídas exatamente no lugar que estão. Quem é louca de fazer um FRETE desse treco fálico? Bom, temos muitos exemplos. A Estátua da Liberdade foi presente dos franceses para os estadunidenses. Foi uma baita função, pois construíram boa parte dela na França, desmonta, vai tudo por navio pros EUA. Eu não queria ser a pessoa com o manual pra montar um treco desse.
Mais fascinante do fretar um pinto obelisco é a história desse pedaço de concreto. Posso garantir que essa coisa já teve uma vida mais emocionante que a nossa. Para tornar tudo um pouco mais divertido, fiz uma espécie de ilustra no canva, bem rústica, claro. Exijo Espero que curtam, pois eu demorei um tempão pra fazer.
se tá muito pequeno pra ler é só aumentar o zoom do seu navegador. segura as ponta aí.
Só de ouvir esse constrói, destrói, desenterra, manda pra cá, freta pra lá me deu uma canseira. Fiquei impressionada acho que mais com o fato de dois pilares do Egito terem sobrevivido a tanto tempo e ido parar em Nova York. Pode ser algo muito banal para as pessoas, mas aqui no meu mundinho ainda acho fascinante.
O obelisco é um sobrevivente.
Outra coisa muito pesada se transformou em presente inusitado, mas comum nos idos tempos. Coincidência ou não, nascia o fio dessa newsletter.
É hora de entrar no próximo tópico.
Fiquei com o obelisco na cabeça (Freud se revira no túmulo gritando YES) e talvez por nenhum acaso ou apenas um sentido que dou ao fato em retrospecto, comecei a ler A viagem do elefante, do grande, do master, do tudão, do por favor você tem que ler se ainda não leu: José Saramago. O autor que não pontua frase. Eu gosto dessa informação pelo fato de que é completamente errada. Ele pontua, uai. Só não sinaliza tudo tão bonitinho com travessão e todo o resto. Segundo ele, a pontuação serve para distrair a leitura. Os travessões, as vírgulas, as letras maiúsculas nos deixam muito na zona de conforto. Assim como placas de trânsito permitem que a gente "terceirize" a atenção (isso foi dito em algum lugar por favor eu não vou sair catando livro na estante a essa hora, tá um calor do inferno. acreditem em mim), os sinais gráficos na história permitem que a gente passe batido em coisas que precisam ser tratadas com muito cuidado. E dá super certo, pois ler qualquer coisa do Saramago demanda muita atenção. Um piscar de olhos e cê já perdeu quem é que está com a palavra. Em 16 de novembro deste ano celebraremos o centenário desse carinha, por aqui comecei cedo.
Pelo título já dá pra perceber que quem vai se deslocar é o elefante. A história surgiu a partir de um dado da vida "real" (coloco entre aspas, pois meu saudoso ex-coorientador lisboeta Helder Godinho dizia que a realidade não existe - ele não só dizia como me fez um livro que prova isso Behind the mirror, Konrad Lorenz).
Saramago, em uma ocasião em Salzburgo, Áustria, vai ao restaurante O Elefante e isso o deixa cheio de ideias. Pois bem, é dado histórico que no século XVI o elefante Salomão cruzou boa parte da Europa - de Lisboa até Viena - porque o rei Dom João III (Portugal) o deu de presente ao arquiduque Maximiliano II (Áustria).
A narrativa é conduzida com o mais requintado sarcasmo característico do escritor português. Ainda estou bem no começo do livro, mas já separei uns trechos que achei bem legais (outros eu grifei pra não me perder):
A rainha acatou mal a disfarçada proibição e retirou-se murmurando que salomão não tinha, em todo o portugal, e mesmo em todo o universo mundo, quem mais lhe quisesse. Via-se que as contradições do ser iam em aumento. Depois de ter chamado ao pobre animal besta sustentada à argola, o pior dos insultos para um irracional a quem na índia tinham feito trabalhar duramente, sem soldada, anos e anos, catarina de áustria exibia agora assomos de paladino arrependimento que quase a tinham levado a desafiar, pelo menos nas formas, a autoridade do seu senhor, marido e rei.
Bem mais adiante:
Escarranchado sobre o encaixe do pescoço com o tronco maciço de salomão, manejando o bastão com que conduz a montada, quer por meio de leves toques quer com castigadoras pontoadas que fazem mossa na pele dura, o cornaca subhro, ou branco, prepara-se para ser a segunda ou terceira figura dessa história, sendo a primeira, por natural primazia e obrigado protagonismo, o elefante salomão, e vindo depois, disputando em valias, ora este, ora aquele, ora por isto, ora por aquilo, o dito subhro e o arquiduque.
Os trechos estão transcritos tal qual no livro. Saramago não coloca maiúsculas sob hipótese alguma, salvo em começo de frase. Ainda, há divisão entre capítulos, embora não marcadas por números. Isso é um alívio, pois pelo menos a gente pode ter várias páginas de total atenção - pois não há outro jeito - e descansar entre uma bloco e outro. THANK DARWIN. (Saramago era ateu, eu jamais evocaria a entidade mitológica cristã ao lado de seu nome, embora ele tenha criado histórias de fundo bíblico magníticas. Ler: Caim e O evangelho segundo Jesus Cristo).
Subhro, nesse caso, é o homem responsável por cuidar de Salomão desde quando esse estava na Índia. Subhro, descobrem, significa "branco", por isso tem aquele comentário ali entre vírgulas que pode ser descabido pra quem não sabe dessa parte.
Só queria fazer um parêntese sobre o comentário do professor Helder (rest in power) citado acima. Com Behind the Mirror ele queria me mostrar que não existe UMA realidade concreta, pois até mesmo uma ameba se desloca dentro de uma realidade - ela consegue detectar onde está o alimento, por exemplo. Assim, não posso dizer que existe uma realidade fixada quando eu não tenho acesso à experiência da realidade da ameba. Mais ou menos isso. O livro de Lorenz trata da relação entre biologia e cultura e como isso atua no nível da filogenética (relação evolutiva entre grupos e organismos). É bem legal.
Terminei a releitura de Incidente em Antares e passei uma tarde de calor dozinferno escrevendo sobre o livro no meu blog. Se quiserem mais detalhes, visitem o We can be readers.
Indico hoje a banda Big Thief com a música Not.
Aqui tem o Tiny Desk NPR com a Adrianne Lanker, vocal da banda. Gostosin de ouvir que só.
De nada!
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Reage, mulher, faz uma dancinha com o Bowie.
Esse vírus do inferno continua aí então pelamordedarwin usa uma máscara PFF2 e segue no alcugel.
Bêjo,
Suellen